Meu relato de encontro com a Libras
Sobre como uma coisa simples do nosso dia-a-dia passa despercebido quando não é uma "barreira social" para nós, e depois transforma nossas vidas pra sempre.
Boas vindas!
Este é um post que faz parte de uma coluna do ‘𝐌esa de 𝐒uspiros’, dedicada a assuntos relacionados ao universo da Língua Brasileira de Sinais! Se você tem vontade de aprender sobre a Libras e trazer mais conhecimento e inclusão pro seu ambiente, aproveite para assinar e visitar minha newsletter, é totalmente gratuito e ajudará a apoiar meu trabalho. Obrigada pela atenção e boa leitura! 🤟🏻
Recomendação de outro post da coluna de Libras:
Antes
Eu sempre tive uma admiração pela língua de sinais. Desde pequena eu via meu pai se comunicando por uma linguagem mais informal e improvisada do que seria a Libras com um homem surdo do bairro, e eu não entendia nada, claro, mas gostava de vê-los gesticular tão habilidosamente com as mãos.
Minha mãe tinha um caderno de sinais oficiais da Libras com vários desenhos representativos, e eu passava horas tentando imitar eles mas era difícil pra uma criança de sete anos compreender aqueles rabiscos cheios de movimentos sem alguém para me auxiliar.
E, pra variar, eu ainda achava que estava fazendo tudo errado, porque meu pai se comunicava com o homem usando sinais totalmente diferentes e ambos se entendiam muito bem, enquanto eu não conseguia decorar nem mesmo sinais básicos como as cores. Foi então que, com o passar do tempo, assimilei que eu não seria capaz de aprender uma língua tão “complexa”, e eu viveria apenas na base de assistir de longe admirada.
Mas aprendi que, quando algo é para pertencer a nós, a vida sempre dá um jeito de nos fazer se encontrar com nossos destinos.
Mudança
Nunca imaginei que teria muitas emoções de vida e viveria sempre na mesmice, conhecendo as mesmas pessoas, convivendo com os mesmos hábitos, nunca saindo de tão perto de casa. O cotidiano era tão recorrente que minhas escolas desde o jardim de infância até o ensino médio eram no mesmo bairro e no mesmo campo, dividido tudo por prédios um ao lado do outro, e, para tudo ser ainda mais prático (ou rotineiro), todas ficavam há exatamente dois quarterões da casa em que cresci.
Até que, chegado um dia, eu realizei meu sonho de me mudar pra uma outra escola que, embora fosse pública, ainda possuia uma (infra)estrutura e corpo docente incrível, e ficava do outro lado da cidade. Tive muito medo de fazer a escolha errada, uma vez que passei a vida toda convivendo com algo que eu já tinha familiaridade, o desconhecido me apavorava, ao passo que também me instigava a me aventurar e sair da zona de conforto, como meu eterno amigo que sempre me encorajou a fazer, mesmo em pequenos passos (obrigado por tudo, Fab).
Era maio de 2022, eu estava ainda no primeiro ano do Ensino Médio, vinda de uma escola de bairro que tinha o ensino precarizado em horário regular com alunos que conhecia desde criança, agora numa escola longe de casa em período integral com outros formatos de aula, pessoas desconhecidas a qual boa parte vinham de escolas particulares, e sem amigos. Foi quando conheci mais de perto a Libras.
Em minha sala de aula, havia uma intérprete e dois irmãos surdos. Logo me apaixonei em tudo, pois não bastava o abismo que existia entre minha antiga escola e a nova, ainda pude ter minha primeira convivência com a inclusão e acessibilidade também, cenário este que me cativava. A forma como ela traduzia tudo de forma tão estimulante e visual fazia eu me perder no olhar, queria poder compreender, fazer parte, interagir, mas eu era (ainda sou) uma pessoa muito introvertida e reservada, de tal modo que tive tão poucos amigos naquele primeiro ano que meu círculo social se baseava em, no máximo, cinco pessoas.
Então meu primeiro ano correu daquela forma, sem muitas interações com outras pessoas além do meu prórpio grupo formado, mas tudo veio a mudar no ano seguinte.
Primeiros passos
Por volta de março e abril de 2023, uma das intérpretes da escola abriu um curso de Libras voluntário para depois da aula, duas vezes por semana. Sem hesitar, me inscrevi para as aulas, tão feliz pela oportunidade que não poderia acreditar que estaria acontecendo, “eu iria poder aprender um idioma tão diferente e importante, o que era o inglês perto disso?” — eu logo pensei haha.
Nas primeiras semanas foi um pouco complicado me acostumar com os sinais, ainda utilizava muito do alfabeto manual para soletrar as palavras e assim os surdos me mostravam como fazia o sinal, no entanto minhas conversas eram muito básicas, sinalizava no máximo três coisas a cada conversa até conseguir crescer meu vocabulário.
Nessa época, fui percebendo como que a Libras era muito mais intuitiva do que pensei, pois mesmo ainda sabendo tão pouco eu conseguia estabelecer um tempo de qualidade com os alunos surdos da escola durante os intervalos. Eu notei como a gente era capaz de se entender, rir e até fofocar de maneira simples e com bastante paciência, apenas sabendo usar nossas expressões, pois como a língua de sinais é um idioma espaço-visual, é possível que uma pessoa surda entenda o que você quer dizer apenas se expressando com o rosto ou com gestos que se assemelham com o ambiente, emoções ou atos que normalmente vemos ou fazemos naturalmente sem perceber.
Neste vídeo que anexei acima é possível ter uma compreensão maior do que eu quero dizer. Foi por meio de sinais mais intuitivos e que remetem a realidade como esses e tantos outros que eu conseguia manter uma base e evoluir meu aprendizado com a Libras, com o tempo fui acrescentando sinais que não eram tão “figurados”, e então pouco a pouco minhas frases passaram a ser mais elaboradas.
Por incrível que pareça, não demorou muito para isso acontecer, pois em questão de dois ou três meses eu já conseguia me comunicar com muita tranquilidade com meus amigos surdos, sem precisar ficar soletrando várias palavras. Contudo, posso dizer com total certeza de que, o que contribuiu para a minha rápida evolução também foi o fato da escola ser integral com três intervalos de 15min até 1h, além de possuir outros alunos surdos em outras salas além da minha, me permitindo praticar a sinalização frequentemente.
Ter a Libras como parte da minha rotina foi uma das melhores coisas que me aconteceram em 2023, e, definitivamente, um dos pilares da minha vida para aquele ano não ter sido tão ruim.
Renascimento
Sinto que depois da Libras eu evolui como pessoa em várias questões além da inclusão, pois a língua de sinais me fez ser um alguém mais expressivo. A Libras exige que o indivíduo se expresse bastante para uma melhor compreensão do surdo, porque uma vez que este não ouve, ele utilizará das expressões corporais e faciais como meio de entonação e emoção da língua. Por exemplo, se você fizer o sinal de “feliz” com expressão triste ou neutra, a pessoa surda poderá se confundir dependendo do contexto da frase, ou se você fizer sinal de “bravo/sério” com o rosto sorridente o surdo pode até interpretar como se fosse ironia!
Depois de conhecer a Libras, eu me tornei uma pessoa mais sociável até mesmo com outros alunos ouvintes nos tempos de escola, meu círculo social cresceu bastante e eu fui deixando de ser tão reservada. Me tornei também uma pessoa mais protagonista no meio estudantil, e cheguei a dar aulinhas de Libras pra uma sala lotada durante seis meses, ajudei as intérpretes quando elas não podiam estar por perto, auxiliando na praticidade do ambiente, e até mesmo traduzir eventos como a minha própria formatura!
Foram definitivamente os dias de ouro da minha vida, a época em que mais evolui como ser humano e explorei tudo o que pude do meu próprio ser, em todos os aspectos possíveis que nunca antes havia concebido.
Mas, falando bem a verdade num tom mais sério, a Libras também me ensinou um lado mais crítico e me deu um choque de realidade, em que nós não damos tanto valor à comunicação como deveríamos porque é algo que já é natural e habitual de nós pessoas ouvintes. Por exemplo, antes mesmo de virmos para o mundo já somos privilegiados, pois quando estamos no ventre de nossas mães já recebemos estímulos de fora do corpo, por meio de sons que chegam até nós, o que então nos coloca em vantagem desde muito cedo em relação aos bebês surdos, que sentem apenas vibrações, nos fazendo ter mais facilidade em aprender sons e nos desenvolvermos mais quando nascemos porque conseguimos nos familiarizar melhor com eles.
As vezes quando pensamos sobre a língua de sinais nós não conseguimos ter o mínimo de dimensão do quão importante ela é, exemplo disso é eu mesma que não tinha tamanha noção disso até descobrir que um dos amigos surdos que fiz nunca teve amigos em toda a sua vida até aquele momento, a não ser os próprios surdos.
Isso me trouxe muito reflexão desde então sobre como algo nunca é sequer imaginado por nós quando não nos afeta diretamente, afinal, em que momento da minha vida que não fosse aquele eu cheguei a ponderar de verdade sobre as dificuldades da comunidade surda em um mundo que não está realmente pronto para abraça-la? E quando o sujeito nasce ou se torna surdo-cego, quem irá acolher esse indivíduo na sociedade? E quantas pessoas em outros contextos sociais ainda mais específicos sofrem a mesma coisa e nem podemos sequer ter-se ideia até que convivamos a mesma experiência?
Em um texto de um dos meus escritores favoritos do Substack,
, ele escreveu algo que me comove muito até os dias de hoje:“Gosto de pensar que a comunicação não serve apenas para comunicar. Ela vai além de explicações científicas ou acadêmicas. Ela tem o intuito de nos conectar a coisas, sentimentos, sensações, imagens, desejos, sons, sabores.” (Leia completo aqui).
A língua de sinais trasmite exatamente essa ideia. Toda a sua estrutura gramatical e cultura são únicas não apenas num sentido antropológico por assim dizer, mas de fato nacional, pois algo que nem todos sabem, a Libras não é universal e sim uma língua oficial brasileira. A forma como as comunidades surdas de outros países se comunicam é por meio de outro sinais, outros movimentos, outras configurações de mão e outras culturas. A exemplo disso temos o ASL (American Sign Language), o Auslan (Australian Signal Language), o LSF (Langue des Signes Française), entre tantos outros. Da mesma forma que é necessário que os idiomas orais tenham sua própria gramática e linguística para representarem a origem, costumes e individualidade de cada povo ou nação, o mesmo ocorre com a língua de sinais, e por isso não se usam os mesmos sinais em todos os países.
O mais incrível é que isso também ocorre dentro da própria Libras. Por exemplo, no português oral é comum que haja abundante variação linguística por conta da geografia de níveis continentais do Brasil, como a palavra bergamota que também significa tangerina, laranja ou mexerica a depender das regiões do país, e isso igualmente ocorre com a língua de sinais. Isso inclusive explica o porquê de eu não entendia o que meu pai e o outro homem surdo do meu bairro falavam, porque meu pai também não sabe os sinais da Libras de fato, mas ele improvisava sinalizando de forma semelhante que o homem compreendia e vice-versa, e essa é uma das maiores belezas da língua de sinais, a expressão é o ponto alto do idioma e por isso se torna mais fácil de alguém aprender do que um idioma verbal, pois é algo que literalmente se vê!
Por fim, ainda há muitas histórias particulares emocionantes (e também hilárias) que vivenciei graças à Libras mas as abordarei detalhadamente em outro post. Eu realmente espero ter te comovido pelo menos um pouco com este relato sobre como a Libras me fez alçar novos horizontes da humanidade que transcedem aquilo que eu buscava antes de saber. Num ato tão singelo de querer fazer parte da inclusão e me divertir fazendo e entendendo sinais só para fofocar perto das pessoas, eu adentrei numa galáxia totalmente nova, incapaz de voltar a ser a mesma pessoa que fui um dia, e apta a acreditar cada vez mais — principalmente nos momentos de maior crise e desânimo — no poder que a educação e a busca pelo conhecimento tem em modificar nossas vidas.
Dêem valor para a comunidade surda, respeitem-na e desmitifiquem esteriótipos sobre a Libras, e, se puderem, aprendam a sinalização mesmo que introdutória. Entendo que é péssimo aprender a sinalizar sozinho, mas há perfis muito bons pela internet que eu lhes garanto, pelo menos o básico é possível sim aprender (recomendo principalmente o netolibras), vocês nunca irão se arrepender de fazer parte disso tudo!
Agradecimentos
Dedico este relato especialmente aos que traçaram essa caminhada comigo com o passar desses anos: à Elindinalva, minha maravilhosa e principal professora e intérprete de Libras, que sacrificou tantas horas de descanso de sua vida porque acreditava na importância do ensino voluntário e acessível da própria inclusão em várias escolas e instituições além da minha, e ao Pepo e Marcela, meus primeiros amigos surdos que fizeram das minhas últimas memórias do Ensino Médio tão maravilhosas e me ensinaram muito mais do que apenas Libras.
Também sou grata aos meus demais amigos Vitinho, Elis, Gaby e Rafinha, que em meus melhores e piores momentos nunca deixaram de estar por perto, aprenderam a Libras junto comigo e a todo momento estimularam todo mundo a aprender e praticar língua de sinais, vocês sempre farão parte desse capítulo bonito da minha vida. E, por fim, aos meus pais, que me apoiam desde a infância em relação à Libras, seja pelo simples fato de já possuir um contato mesmo que não tão frequente com os surdos, até o de constantemente me dar suporte para aprender a língua de sinais, me motivando a nunca desistir apesar das dificuldades.
A todos os que citei e também os que fizeram parte até mesmo de curtos minutos de toda essa história, meu coração repleto de gratidão sempre estará com todos vocês. ♡
incrível como sempre myli, você me inspira!
Meu Deus. Esse foi um dos textos mais lindos que eu ja li no Substack! E vc tem razão, a vida sempre da um jeito de trazer de volta o que foi feito para nós! Caramba, amei de vdd!
Sempre quis aprender libras desde que assisti “Quando o Telefone Toca” e “Melancia Cintilante” é uma das linguagens mais bonitas que eu ja vi! Eu sei um pouco de linguagem de sinais coreanas e o seu texto me fez ficar com ainda mais vontade de aprender Libras e outros idiomas. Continue sendo assim! Parabéns pela sua conquista e o seu bom coração