A Morte ensina sobre a Vida
Há morte e vida em todos os segundos de nossa existência, e é inconcebível como isso é belo e horrível em todas as nossas esferas.
Você teme os seus fins tanto quanto os seus começos?
A Morte é um fato inevitável de nossas vidas, embora a sociedade em sua grande maioria tenha temor, é algo que encontra a todos em algum momento. O receio em sequer mencionar o assunto também é comumente decorrido pelos mais diversos motivos, há quem crê que falar sobre pode atrair azar ou maldição, outros lidam como uma passagem para o outro lado, uma condenação ou castigo, um julgamento da alma para a vida eterna ou até reencarnações em outros corpos. Contudo, é de se concordar que a morte irremediavelmente é um momento de imensa dor e que ninguém gosta de vivenciar. Mas o quê realmente a morte simboliza e de que formas ela se manifesta?
Por que você está com medo se eu estou sempre à espreita?
Se eu lhe perguntasse de repente “Qual palavra você complementaria para a Morte?”, o que você me diria? Talvez tristeza, luto, perda, saudade, raiva, fim ou medo estariam possivelmente inclusas nas opções, e para o restante da sociedade também. No entanto, será que todos definitivamente enxergam (ou deveriam) enxergar esse fato como incondicionalmente ruim?
O fim é, para muitos, um momento de desorientação, uma apunhalada no crânio a te deixar inconsciênte, uma abertura no peito de tal modo a rasgar os músculos, um animal ferido que constantemente urra dentro da alma suplicando por ajuda, algo a se fugir ininterruptamente para lugar nenhum, todavia, nem sempre foi visto assim.
Uma perspectiva ancestral
No paganismo por exemplo, os antigos Celtas acreditavam na natureza como a maior representação de suas divindades, pois dela colhiam seus suprimentos, e dela todos os seres vivos (incluindo os humanos) eram filhos, portanto, suas mudanças também se refletiam neles. Os ciclos de vida e morte eram comparados com a passagem dos ciclos das estações do ano, da qual o chamado Samhaim (que significa “o fim do verão” e celebra a última colheita) era considerado a preparação para a vinda da morte da terra, ou seja, a chegada do inverno.

Tal momento era cultuado como a Mãe Terra prestes a adormecer no ápice de sua sabedoria anciã, próximo a um momento de muito frio e pouco solo fértil, comida escassa e menos horas de Sol. Com os tempos difíceis de inverno para a época, os pagãos acreditavam no chamado Yule como uma época de ser grato e aproveitar as boas colheitas ao longo do ano, e mantendo a esperança de que a luz do dia e a vida iriam voltar logo. A Morte para eles era intrínseca a Vida, uma parte do ciclo que, embora sendo complicado, era idolatrado como um Ano Novo Celta, em que a natureza dava seus últimos suspiros junto de seus últimos presentes, e o seu fim era regido com fé, e que mesmo em meio as adversidades, nunca lhe faltariam a confiança de que dias bons iriam chegar novamente.
“Eles entendiam que, assim como a natureza ‘morria’ para o inverno, o homem também poderia ‘matar’ velhos comportamentos para que novos surgissem e, dessa maneira, contribuir para evolução da própria alma. Não é à toa que esse período de transição entre estações ganhou uma conotação mágica e espiritual, a ponto de os celtas acreditarem que o Samhain também seria a fase mais propícia para o contato com o mundo dos mortos.” — Edna Marta Oliveira da Silva.
Ok, mas então a morte é apenas uma comemoração antiga que não é mais celebrada visto que os tempos mudaram e não praticamos essas crenças? Obviamente que não.
Simbologia do Día de los Muertos

Você muito provavelmente já ouviu falar nessa celebração mundialmente famosa certo? Mas você tem compreenção da profundidade dessa tradição mexicana?
O mundo como um todo lida de maneira mais sombria assim por dizer no que se refere a morte, uma época da vida em que aqueles que ficam sentem o amargor vazio dos que partem, sem cor, sem euforia, apenas com o sentimento de ausência que notadamente, nunca vai embora, você apenas aprende a conviver com ela, mas os mexicanos cultuam o total oposto desse cenário.
O México durante centenas de anos mantém a tradição religiosa sincretista da celebração ao Dia dos Mortos, uma data festiva de honra aos antepassados a fim de compartilhar de suas histórias enquanto vivos, crendo na eternidade de suas almas ao seguir passando adiante suas memórias. O festival é uma forma de firmar as conexões entre o mundo dos espíritos que guiam as famílias durante a época do ano em que o véu que separa os universos entre humanos e fantasmas torna-se mais fino e passível de comunicação. Mas afinal, o que isso nos diz?
A pura vida, em eterna constância, perde o seu sentido uma vez que torna-se recorrente e sem uma resposta final. O fim dela te traz a reflexão das memórias e lições que a permitiu te passar enquanto esteve contigo, te fazendo enxergar o valor dela no antes e após a sua transformação.
O maior ensinamento dessa ancestralidade é a valorização dos fins. Os mexicanos compreendem a morte como uma fase que não deve ser triste, pois é o que transforma nossas vidas e dá significado a elas, e por isso tratam como algo a se comemorar. E há quem pense que a festividade se limite a morte do corpo e da matéria, mas não prenda-se a isso. O Día de los Muertos prega que, a morte, em todas as suas formas, dá beleza ao seu oposto e marca os encerramentos de ciclos e início de novas oportunidades, como por exemplo uma profissão que deixamos de seguir após muitos anos de dedicação, um relacionamento que não faz mais sentido, o ensino médio ou a graduação que terminamos, um brinquedo favorito da infância que você de repente parou de amar. A morte sempre está contigo, pois ela anda de mãos dadas com a passagem da vida, então por que deveria teme-las?

Como um exercício prático, pare por um instante e visualize sua existência sendo imortal. Apesar da ideia de se possuir tanto tempo pra realizar tudo o que é possível, qual satisfação isso lhe garante? Qual a graça de se ter o “conforto” do infinito sem ao final ter certeza de um valor adquirido numa eterna repetição? Todos os dias, todos as horas, minutos e segundos de nossa existência, uma parte de nós morre para dar espaço a novas formas de vida, desde níveis microscópicos do ponto de vista biológico até a mais complexa psicologia e filosofia de cada um de nós. Você está vulnerável a uma infinita drenagem de mortes em diversos aspectos do seu dia sem nunca perceber, e essa é a beleza da vida: nada mais que aproveitar a caminhada até o fim tragicamente belo dela.
“Em suma, eu não deveria me permitir sentir o lado soturno dela também? A definição de morte então é ser motivo de alegria?” Não, e seria de extrema desumanidade eu lhe afirmar que TODA morte é algo destinado ou semelhante a isso.
⚠︎ Um abordagem verdadeiramente sensível

Como eu seria capaz de proclamar com a maior entonação ignorante do mundo que toda a morte tem seu lado maravilhoso de lição de vida? Quem em sã covardia poderia prometer-lhe a mais singela beleza da tragédia uma vez não tendo convicções das experiências do seu próximo?
Por muito tempo eu me indaguei qual poderia ser a melhor definição para a morte visto que ela se apresenta sendo tão subjetiva, tão tenebrosa, comum, distante e onipresente. O que há de tão único nela que a faz talvez a verdade mais temível, sabendo que é somente ela a que podemos ter certeza num mundo de dúvidas? Foi quando eu conheci a história deles. (Conteúdo verídico sensível)
O Milagre dos Andes
Esta história é familiar para você? Em outubro de 1972, o avião da Força Aérea Uruguaia que transportava 45 pessoas no total colidiu com a Cordilheira dos Andes entre o Chile e Argentina devido ao mau tempo e falha de rota. O que era para ser uma viagem rápida para Santiago carregando um time de rugby (tendo em sua maioria jovens de 20 e poucos anos), tornou-se uma luta de sobrevivência, fé e união de retorno para casa, no entanto, em decorrência da falta de comida, os sobreviventes se viram num cenário que os obrigava a recorrer ao seu limite:
consumir carne humana dos mortos para manterem-se vivos.

A tragédia trouxe momentos insanos de sofrimento tanto aos 16 sobreviventes como também suas famílias, e reflexões que perduram até os dias de hoje. Dentre tantos questionamentos, um dos que mais intriga as pessoas é, “Por que isso aconteceu? Se tudo foi salvação divina, então por que não voltaram todos juntos?” Muitas dúvidas que testaram a fé de milhares de pessoas — e principalmente a deles — ainda rompem as barreiras da razão humana. Se o divino esteve com eles o tempo todo, por que colocou como “destino” a morte torturante e lenta de tantas outros que tão novos sequer puderam dizer adeus? Da mesma forma, como os que puderam voltar para suas mães e seus pais conseguiriam resistir a quase dois meses e meio na pior era das montanhas, à cerca de quase 4km de altura se não se alimentassem do corpo de seus falecidos amigos de infância? Qual o sentido disso tudo? Um acontecimento “acidental” que desviou para sempre o rumo de suas vidas, a custo de qual lição verdadeira?
“La vida es un milagro y la muerte un misterio.” — Gustavo Zerbino
Ditado por um dos sobreviventes dos Andes, Zerbino exclamou o que, para mim, poderia ser a definição mais aproximada do que é realmente a morte. Em meio a tantas veracidades de casos como este que ocorrem ou já ocorreram na humanidade, cabe a nós pequenas células do universo, definir o que transcede os limites de nossa longevidade? Em todos os milênios de nossa presença humana, experimentamos uma infinidade de questionamentos que desafiavam a natureza da vida, recorremos a religiões que reconfortavam-nos, filosofias e tradições desenvolvidas por séculos, processos científicos que acarretaram em milagres e desgraças, e o que aprendemos com tudo isso?
Que a Morte ensina sobre a Vida. Em uma complexa realidade que transmuta incessantemente, a história nos mostra que os fins e recomeços fortificam nossa busca por criar laços com o que nos cativa, nossas vivências registram e transmitem a essência do que é experimentar, aprender, e por fim, passar adiante. O ser humano caminha por toda sua vida procurando por respostas que as vezes nem sabe qual a própria dúvida, é posto em riscos que são unicamente sentidos por ele, e ao seu final descreve em sua alma o significado que, embora possa ser diferente para o restante de seus iguais, ainda sim não deixa de ser uma verdade, pois é parte de experiências que nenhum outro ser irá sofrer. O fim nunca é totalmente bom ou ruim, ele é um simples mistério que irá ser respondido de acordo com as suas convicções. E ao passo de que cada um de nós possui sua individualidade, eu deixo a você que reflita e responda para si mesmo: Quantas vezes a morte de alguma coisa provou o valor da vida dela a você?
É interessante perceber como diferentes culturas e crenças ressignificam o fim, transformando-o em passagem, renovação ou continuidade de outro jeito. O medo da morte está enraizado em nós, mas também é ela que dá peso e beleza à vida. Se fôssemos imortais, será que daríamos o mesmo valor às nossas experiências?
A ideia de que morremos e renascemos o tempo todo – seja em fases da vida, nos encerramentos de ciclos ou nas versões de nós mesmos que deixamos para trás – me fez refletir sobre quantas vezes resistimos à mudança por puro medo de perder o que conhecemos. Mas talvez, como os antigos Celtas e os mexicanos do Día de los Muertos, devêssemos aprender a honrar nossos fins, celebrar o que já fomos e abrir espaço para o que está por vir.
Afinal, se algo acaba, é porque deixou sua marca. 🌙💛
Que texto incrível!! Para mim tanto o fato de morrer e também de viver para sempre é agoniante